Interlocutores de sobriedade

 


Nas fases iniciais da abstinência surgem muitas pessoas dando e fornecendo “dicas” infalíveis para o abstêmio manter-se em abstinência. Assim, é comum que pessoas que nunca tiveram nenhum problema de drogadição e nem fazem parte de tratamentos de adictos deem “superdicas”. Isso ocorre com frequência e se baseia, via de regra, na boa intenção das pessoas. Contudo, lembre-se do ditado popular: “de boas intenções o inferno está cheio”[1]. Entre tantas “dicas” recebidas, algumas delas são totalmente “furadas” e podem meter o abstêmio em situações de perigo ou exposição indesejada. Então, como fazer para prevenir-se dessas “dicas” que se constituem, muitas vezes, em verdadeiras desinformações?

 

Na Teoria da Comunicação existem as figuras do emissor e do receptor que são os responsáveis pela linguagem. No processo abstêmio, por sua vez, existe um DUPLO CONJUNTO DE COMUNICADORES. Temos de um lado os abstêmios que se comunicam entre si e, do outro lado, temos o abstêmio se comunicando com terceiros (familiares, terapeutas, amigos, psiquiatras e psicólogos). Vou analisar, rapidamente, cada conjunto de comunicadores.

 

No PRIMEIRO CONJUNTO DE COMUNICADORES[2], durante o processo abstêmio, temos o desenvolvimento dessa comunicação em sentido binário (ou de “mão dupla”) uma vez que se desenvolvem relações entre os próprios abstêmios. Por exemplo, os abstêmios com MAIOR tempo de abstinência podem indicar e sugerir mecanismos de superação e enfrentamento de problemas aos abstêmios com MENOR tempo de abstinência. Todavia, os abstêmios novatos também podem influenciar e trazer muita experiência de vida útil aos abstêmios experientes. Por isso, diz-se que essa relação é binária já que se desenvolve entre abstêmios e auxilia ambos. Entretanto, por óbvio, o poder de persuasão do abstêmio experiente sobre o abstêmio novato é muito mais efetivo do que o contrário.

 

No SEGUNDO CONJUNTO DE COMUNICADORES, durante o processo abstêmio, teremos comunicação multilateral já que profissionais e amadores estarão envolvidos na linguagem. São exemplos de pessoas que englobam esse segundo conjunto de comunicadores: familiares, pessoas religiosas, terapeutas, amigos, assistentes sociais, psiquiatras e psicólogos. De fato, é muita gente dando palpite sobre o mesmo problema. Por causa disso, é importante que o abstêmio – principalmente o abstêmio mais novato – utilize a LUCIDEZ e RACIONALIDADE para conseguir entender o que cada um dos envolvidos está querendo lhe dizer. A intenção de todos é a mesma: desejam que a pessoa obtenha a abstinência. Porém, logo após essa intenção comum, as diferenças surgirão e a linguagem se complicará podendo ser ambígua, contraditória, omissa e, até mesmo, equivocada. Por exemplo, problemas psiquiátricos serão tratados pelos médicos, questões de afetividade podem ser tratadas em terapias individuais com psicólogos, assuntos existenciais necessitam de pessoas espiritualizadas e temas familiares necessitam de terapias de família. Cada uma dessas demandas necessita de alguém habilitado tecnicamente para tratá-las[3]. Essa multiplicidade de terceiros, de opiniões, de problemas e de tratamentos pode gerar uma confusão no abstêmio, sobretudo nos novatos[4].

 

Com esse panorama complexo surge a pergunta: quem o abstêmio deverá ouvir? Qual decisão o abstêmio vai acatar? A única resposta coerente é que o abstêmio deve permanecer em abstinência. Só isso, nada mais que isso. Todos os problemas e assuntos pendentes serão lentamente resolvidos no decorrer do processo de abstinência. O busílis[5] do abstêmio não é emprego, família ou relacionamentos. O abstêmio deve permanecer em abstinência, só isso. Feito esses breves apontamentos, apresento uma solução denominada: INTERLOCUTORES DE SOBRIEDADE.

 

O INTERLOCUTOR DE SOBRIEDADE é alguém – ou alguma coisa – capaz de lembrar ao abstêmio da necessidade de “apenas” ficar sóbrio. Existem diversas formas de interlocutores de sobriedade, por exemplo: auto-honestidade, técnica da carta de gratidão, técnica dos bilhetes de lucidez, terapia do telefone, técnica do apadrinhamento (padrinho, madrinha) ou comparecimento periódico a grupos anônimos. Tais técnicas representam a materialização de momentos conscienciais do próprio abstêmio e podem ser verdadeiras bússolas em momentos de dúvidas sobre a necessidade de manter-se em abstinência.

 

Quem é o melhor interlocutor de sobriedade? O melhor e mais efetivo interlocutor de sobriedade é a própria consciência do abstêmio. Na realidade, na maior parte do tempo será a própria consciência do abstêmio que deverá lembrá-lo da necessidade de permanecer em abstinência. Em suma, mais uma vez percebe-se a importância da responsabilidade na manutenção da abstinência.

 

Destaco que estamos no campo da abstinência, ou seja, de pessoas que desejam manter-se em processo de abstinência. Essas pessoas sabem que devem tomar decisões assertivas e no sentido da manutenção da própria abstinência. Isso é muito diferente das pessoas que desejam tomar decisões para manterem-se em processo de adicção. Nesse último caso, temos pessoas que se utilizam da autossuficiência e da exposição desnecessária como formas distorcidas e equivocadas de, supostamente, manterem-se em abstinência. Sem dúvida alguma, a consciência que toma decisões no sentido da abstinência é muito diferente da consciência que deseja manter-se adicta.

 

Concluindo, a própria consciência do abstêmio é o seu principal interlocutor de sobriedade porque é através dela que o abstêmio tomará suas decisões finais. Porém, para que aumente a assertividade nas suas decisões recomenda-se a utilização de diversas técnicas que formam um complexo mecanismo denominado de INTERLOCUTORES DE SOBRIEDADE.

 

Bons estudos!

Escritor: Péricles Ziemmermann

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REFERÊNCIAS

 

[1] “DE BOAS INTENÇÕES O INFERNO ESTÁ CHEIO. Esta frase é de autoria de um famoso teólogo e santo francês, SÃO BERNARDO DE CLAIRVAUX (1090-1153). Muito místico, travou grandes polêmicas com o célebre namorado de Heloísa, o também teólogo e filósofo escolástico Pedro Abelardo (1079-1142). Conselheiro de reis e papas, SÃO BERNARDO pregou a Segunda Cruzada, destacando-se no combate àqueles que eram considerados hereges por ousarem interpretar de modos plurais a ortodoxia católica. A frase foi brandida, não apenas contra seus desafetos, mas também a seus aliados, e tornou-se proverbial para denunciar que as boas intenções, além de não serem suficientes, podem levar a fins contrários aos esperados.” (SILVA, Deonísio da. HISTÓRIAS DE FRASES FAMOSAS. Sem outros dados de referência para acrescentar).

 

[2] No primeiro conjunto de comunicadores, durante o processo abstêmio, temos o desenvolvimento dessa comunicação em sentido binário uma vez que o abstêmio maior (abstêmio propriamente dito) pode interagir com o abstêmio menor (recuperando), porém o abstêmio menor também tem muita informação para passar ao abstêmio maior. Por isso, a relação entre eles é bilateral ou binária. Entretanto, o poder de persuasão do abstemaior sobre o abstemenor é muito mais efetivo do que o contrário.

 

[3] Esse é o campo fértil para o “charlatanismo”. Sugerimos, humildemente, a leitura do texto: CHARLATANISMO OU MERCANTILISMO DA ADICÇÃO

 

[4] Tecnicamente, abstêmio novato é o abstêmio mínimo e o abstêmio menor.

 

[5] Sugerimos, humildemente, que assista ao vídeo: PRINCÍPIO DO BUSÍLIS ET PUNCTUM DOLENS

 

ZIEMMERMANN, Péricles. PRINCÍPIOS ABSTEMIOLÓGICOS. Porto Alegre/RS: Editora Simplíssimo, 2018. ISBN 978-85-824565-3-8

 

ZIEMMERMANN, Péricles. TEORIAS ABSTEMIOLÓGICAS. Porto Alegre/RS: Editora Simplíssimo, 2019. ISBN 978-85-824566-2-0

                                      

ZIEMMERMANN, Péricles. ITINERÁRIOS ABSTEMIOLÓGICOS. Porto Alegre/RS: Editora Simplíssimo, 2020. ISBN 978-85-924432-3-8

 

ZIEMMERMANN, Péricles. ABSTEMIOPATIAS. Porto Alegre/RS: Editora Simplíssimo, 2021. ISBN 978-85-824583-6-5

 

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